31 de mar. de 2008

Multimídia

Estamos na espera dos seguintes vídeos:
.
* Aulas do curso de extensão "Para Ler Deleuze" que o Prof. Dr. Sílvio Gallo ministrou dias 13, 14 e 15 de março no Instituto Ricardo Brennand. A carga horária foi de 12 horas.
* "O Abcdário de Deleuze". São 7 horas de vídeo.
.
Aí vamos estar disponibilizando aos interessados!
.

Textos Disponíveis na Casa Amarela

Textos já disponíveis na Casa Amarela:
.
* "Rizoma" de Mil Platôs, Vol. 1. Deleuze & Guattari;
* Artigos da Cult "Deleuze: Um dia o século será Deleuziano", de Roberto Machado e Suely Rolnik, entre outros.
.
Vamos disponibilizar:
.
* O texto "Introdução à vida não fascista" de Foucault;
* O texto-transcrição completo de "O Abcdário de Deleuze";
* Alguns ensaios do livro "Revolução Molecular" de Guattari (a definir...);
* Capítulo "Referências para uma Esquizoanálize" de "O Inconsciente Maquínico" de Guattari;
* Capítulo final que fala da Esquizoanálise do livro "O Anti-Édipo" de Deleuze & Guattari;
.
Nome da Pasta: "Esquizoanálise"
Nome do Professor: "Grupo de Estudos A Beira"

Introdução à vida não fascista, Foucault.

Introdução à vida não fascista [*], Michel Foucault

Durante os anos 1945-1965 (falo da Europa) existia uma certa forma correta de pensar, um certo estilo de discurso político, uma certa ética do intelectual. Era preciso ser unha e carne com Marx, não deixar seus sonhos vagabundearem muito longe de Freud e tratar os sistemas de signos - e significantes - com o maior respeito. Tais eram as três condições que tornavam aceitável essa singular ocupação que era a de escrever e de enunciar uma parte da verdade sobre si mesmo e sobre sua época.
.
Depois, vieram cinco anos breves, apaixonados, cinco anos de jubilação e de enigma. Às portas de nosso mundo, o Vietnã, o primeiro golpe em direção aos poderes constituídos. Mas aqui, no interior de nossos muros, o que exatamente se passa? Um amálgama de política revolucionária e anti-repressiva? Uma guerra levada por dois frontes - a exploração social e a repressão psíquica? Uma escalada da libido modulada pelo conflito de classes? É possível. De todo modo, é por esta interpretação familiar e dualista que se pretendeu explicar os acontecimentos destes anos. O sonho que, entre a Primeira Guerra Mundial e o acontecimento do fascismo, teve sob seus encantos as frações mais utopistas da Europa - a Alemanha de Wilhem Reich e a França dos surrealistas - retornou para abraçar a realidade mesma: Marx e Freud esclarecidos pela mesma incandescência.
.
Mas é isso mesmo o que se passou? Era uma retomada do projeto utópico dos anos trinta, desta vez, da escada da prática social? Ou, pelo contrário, houve um movimento para lutas políticas que não se conformavam mais ao modelo prescrito pela tradição marxista? Para uma experiência e uma tecnologia do desejo que não eram mais freudianas? Brandiram-se os velhos estandartes, mas o combate se deslocou e ganhou novas zonas.
.
O Anti-Édipo mostra, pra começar, a extensão do terreno ocupado. Porém, ele faz muito mais. Ele não se dissipa no denegrimento dos velhos ídolos, mesmo se se diverte muito com Freud. E, sobretudo, nos incita a ir mais longe.
.
Ler o Anti-Édipo como a nova referência teórica seria um erro de leitura (vocês sabem, essa famosa teoria que se nos costuma anunciar: essa que vai englobar tudo, essa que é absolutamente totalizante e tranqüilizadora, essa, nos afirmam, “que tanto precisamos” nesta época de dispersão e de especialização, onde a “esperança” desapareceu). Não é preciso buscar uma “filosofia” nesta extraordinária profusão de novas noções e de conceitos-surpresa. O Anti-Édipo não é um Hegel brilhoso. A melhor maneira, penso, de ler o Anti-Édipo é abordá-lo como uma “arte”, no sentido em que se fala de “arte erótica”, por exemplo. Apoiando-se sobre noções aparentemente abstratas de multiplicidades, de fluxo, de dispositivos e de acoplamentos, a análise da relação do desejo com a realidade e com a “máquina” capitalista contribui para responder a questões concretas. Questões que surgem menos do porque das coisas do que de seu como. Como introduzir o desejo no pensamento, no discurso, na ação? Como o desejo pode e deve desdobrar suas forças na esfera do político e se intensificar no processo de reversão da ordem estabelecida? Ars erótica, ars theoretica, ars politica.
.
Daí os três adversários aos quais o Anti-Édipo se encontra confrontado. Três adversários que não têm a mesma força, que representam graus diversos de ameaça, e que o livro combate por meios diferentes.
1) Os ascetas políticos, os militantes sombrios, os terroristas da teoria, esses que gostariam de preservar a ordem pura da política e do discurso político. Os burocratas da revolução e os funcionários da verdade.
2) Os lastimáveis técnicos do desejo - os psicanalistas e os semiólogos que registram cada signo e cada sintoma, e que gostariam de reduzir a organização múltipla do desejo à lei binária da estrutura e da falta.
3) Enfim, o inimigo maior, o adversário estratégico (embora a oposição do Anti-Édipo a seus outros inimigos constituam mais um engajamento político): o fascismo. E não somente o fascismo histórico de Hitler e de Mussolini - que tão bem souberam mobilizar e utilizar o desejo das massas -, mas o fascismo que está em nós todos, que martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora.
Eu diria que o Anti-Édipo (que seus autores me perdoem) é um livro de ética, o primeiro livro de ética que se escreveu na França depois de muito tempo (é talvez a razão pela qual seu sucesso não é limitado a um “leitorado” [“lectorat”] particular: ser anti-Édipo tornou-se um estilo de vida, um modo de pensar e de vida). Como fazer para não se tornar fascista mesmo quando (sobretudo quando) se acredita ser um militante revolucionário? Como liberar nosso discurso e nossos atos, nossos corações e nossos prazeres do fascismo? Como expulsar o fascismo que está incrustado em nosso comportamento? Os moralistas cristãos buscavam os traços da carne que estariam alojados nas redobras da alma. Deleuze e Guattari, por sua parte, espreitam os traços mais ínfimos do fascismo nos corpos. Prestando uma modesta homenagem a São Francisco de Sales, se poderia dizer que o Anti-Édipo é uma Introdução à vida não fascista.
.
Essa arte de viver contrária a todas as formas de fascismo, que sejam elas já instaladas ou próximas de ser, é acompanhada de um certo número de princípios essenciais, que eu resumiria da seguinte maneira se eu devesse fazer desse grande livro um manual ou um guia da vida cotidiana:
- Libere a ação política de toda forma de paranóia unitária e totalizante;
- Faça crescer a ação, o pensamento e os desejos por proliferação, justaposição e disjunção, mais do que por subdivisão e hierarquização piramidal;
- Libere-se das velhas categorias do Negativo (a lei, o limite, a castração, a falta, a lacuna), que o pensamento ocidental, por um longo tempo, sacralizou como forma do poder e modo de acesso à realidade. Prefira o que é positivo e múltiplo; a diferença à uniformidade; o fluxo às unidades; os agenciamentos móveis aos sistemas. Considere que o que é produtivo, não é sedentário, mas nômade;
- Não imagine que seja preciso ser triste para ser militante, mesmo que a coisa que se combata seja abominável. É a ligação do desejo com a realidade (e não sua fuga, nas formas da representação) que possui uma força revolucionária;
- Não utilize o pensamento para dar a uma prática política um valor de verdade; nem a ação política, para desacreditar um pensamento, como se ele fosse apenas pura especulação. Utilize a prática política como um intensificador do pensamento, e a análise como um multiplicador das formas e dos domínios de intervenção da ação política;
- Não exija da ação política que ela restabeleça os “direitos” do indivíduo, tal como a filosofia os definiu. O indivíduo é o produto do poder. O que é preciso é “desindividualizar” pela multiplicação, o deslocamento e os diversos agenciamentos. O grupo não deve ser o laço orgânico que une os indivíduos hierarquizados, mas um constante gerador de “desindividualização”;
- Não caia de amores pelo poder.
.
Se poderia dizer que Deleuze e Guattari amam tão pouco o poder que eles buscaram neutralizar os efeitos de poder ligados a seu próprio discurso. Por isso os jogos e as armadilhas que se encontram espalhados em todo o livro, que fazem de sua tradução uma verdadeira façanha. Mas não são as armadilhas familiares da retórica, essas que buscam seduzir o leitor, sem que ele esteja consciente da manipulação, e que finda por assumir a causa dos autores contra sua vontade. As armadilhas do Anti-Édipo são as do humor: tanto os convites a se deixar expulsar, a despedir-se do texto batendo a porta. O livro faz pensar que é apenas o humor e o jogo aí onde, contudo, alguma coisa de essencial se passa, alguma coisa que é da maior seriedade: a perseguição a todas as formas de fascismo, desde aquelas, colossais, que nos rodeiam e nos esmagam até aquelas formas pequenas que fazem a amena tirania de nossas vidas cotidianas.
.
[*] Preface in: Gilles Deleuze e Félix Guattari. Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia, New York,
Viking Press, 1977, pp. XI-XIV. Traduzido por Wanderson flor do nascimento
.

"O Abcdário de Deleuze", letra "D"

D de Desejo
.
Claire Parnet: D de Desejo. Tudo o que sempre quiseram saber sobre o desejo. Primeira lição: Só se pode desejar em um conjunto. Então, sempre se deseja um todo. Vamos passar a D. Para D, preciso de meus papéis, pois vou ler o que há no Petit Larousse Illustré, em "Deleuze", que também se escreve com D. Lê-se: "Deleuze, Gilles, filósofo francês, nascido em Paris, em 1925".
Gilles Deleuze: Talvez hoje esteja no Larousse.
CP: Hoje, estamos em 1988.
GD: Eles mudam todo ano.
CP: "Com Félix Guattari, ele mostra a importância do desejo e seu aspecto revolucionário frente a toda instituição, até mesmo psicanalítica". E indicam a obra que demonstra tudo isso: O anti-Édipo, em 1972. Como você é, aos olhos de todos, o filósofo do desejo, eu gostaria que falássemos do desejo. O que era o desejo? Vamos colocar a questão do modo mais simples: quando O anti-Édipo...
GD: Não era o que se pensou, em todo caso. Estou certo disso, mesmo naquele momento, ou seja, as pessoas mais encantadoras que eram... foi uma grande ambigüidade, um grande mal-entendido, um pequeno mal-entendido. Queríamos dizer uma coisa bem simples. Tínhamos uma grande ambição, a saber, que até esse livro, quando se faz um livro é porque se pretende dizer algo novo. Achávamos que as pessoas antes de nós não tinham entendido bem o que era o desejo, ou seja, fazíamos nossa tarefa de filósofo, pretendíamos propor um novo conceito de desejo. As pessoas, quando não fazem filosofia, não devem crer que é um conceito muito abstrato, ao contrário, ele remete a coisas bem simples, concretas. Veremos isso. Não há conceito filosófico que não remeta a determinações não filosóficas, é simples, é bem concreto. Queríamos dizer a coisa mais simples do mundo: que até agora vocês falaram abstratamente do desejo, pois extraem um objeto que é, supostamente, objeto de seu desejo. Então podem dizer: desejo uma mulher, desejo partir, viajar, desejo isso e aquilo. E nós dizíamos algo realmente simples: vocês nunca desejam alguém ou algo, desejam sempre um conjunto. Não é complicado. Nossa questão era: qual é a natureza das relações entre elementos para que haja desejo, para que eles se tornem desejáveis? Quero dizer, não desejo uma mulher, tenho vergonha de dizer uma coisa dessas. Proust disse, e é bonito em Proust: não desejo uma mulher, desejo também uma paisagem envolta nessa mulher, paisagem que posso não conhecer, que pressinto e enquanto não tiver desenrolado a paisagem que a envolve, não ficarei contente, ou seja, meu desejo não terminará, ficará insatisfeito. Aqui considero um conjunto com dois termos, mulher, paisagem, mas é algo bem diferente. Quando uma mulher diz: desejo um vestido, desejo tal vestido, tal chemisier, é evidente que não deseja tal vestido em abstrato. Ela o deseja em um contexto de vida dela, que ela vai organizar o desejo em relação não apenas com uma paisagem, mas com pessoas que são suas amigas, ou que não são suas amigas, com sua profissão, etc. Nunca desejo algo sozinho, desejo bem mais, também não desejo um conjunto, desejo em um conjunto. Podemos voltar, são fatos, ao que dizíamos há pouco sobre o álcool, beber. Beber nunca quis dizer: desejo beber e pronto. Quer dizer: ou desejo beber sozinho, trabalhando, ou beber sozinho, repousando, ou ir encontrar os amigos para beber, ir a um certo bar. Não há desejo que não corra para um agenciamento. O desejo sempre foi, para mim, se procuro o termo abstrato que corresponde a desejo, diria: é construtivismo. Desejar é construir um agenciamento, construir um conjunto, conjunto de uma saia, de um raio de sol...
CP: De uma mulher.
GD: De uma rua. É isso. O agenciamento de uma mulher, de uma paisagem.
CP: De uma cor...
GD: De uma cor, é isso um desejo. É construir um agenciamento, construir uma região, é realmente agenciar. O desejo é construtivismo. O anti-Édipo, que tentava...
CP: Espere, eu queria...
GD: Sim?
CP: É por ser um agenciamento, que você precisou, naquele momento, ser dois para escrever por ser em um conjunto, que precisou de Félix, que surgiu em sua vida de escritor?
GD: Félix faria parte do que diremos, talvez, sobre a amizade, sobre a relação da filosofia com algo que concerne à amizade, mas, com certeza, com Félix, fizemos um agenciamento. Há agenciamentos solitários, e há agenciamentos a dois. O que fizemos com Félix foi um agenciamento a dois, onde algo passava entre os dois, ou seja, são fenômenos físicos, é como uma diferença, para que um acontecimento aconteça, é preciso uma diferença de potencial, para que haja uma diferença de potencial precisa-se de dois níveis. Então algo se passa, um raio passa, ou não, um riachinho... É do campo do desejo. Mas um desejo é isso, é construir. Ora, cada um de nós passa seu tempo construindo, cada vez que alguém diz: desejo isso, quer dizer que ele está construindo um agenciamento, nada mais, o desejo não é nada mais.
CP: É um acaso se... porque o desejo é sentido, enfim, existe em um conjunto ou em um agenciamento, que O anti-Édipo, onde você começa a falar do desejo, é o primeiro livro que você escreve com outra pessoa, com Félix Guattari?
GD: Não, você tem razão, era preciso entrar nesse agenciamento novo para nós, escrever a dois, que nós dois não vivíamos da mesma maneira, para que algo acontecesse, ou seja, e esse algo era, finalmente, uma hostilidade, uma reação contra as concepções dominantes do desejo, as concepções psicanalíticas. Era preciso ser dois, foi preciso Félix, vindo da psicanálise, eu me interessando por esses temas, era preciso tudo isso para dizermos que havia lugar para fazer uma concepção construtiva, construtivista do desejo.
CP: Você poderia definir, de modo sucinto, como vê a diferença entre o construtivismo e a interpretação analítica?
GD: Acho que é bem simples. Nossa oposição à psicanálise é múltipla, mas quanto ao problema do desejo, é... é que os psicanalistas falam do desejo como os padres. Não é a única aproximação, os psicanalistas são padres. De que forma falam do desejo? Falam como um grande lamento da castração. A castração é pior que o pecado original. É uma espécie de maledicência sobre o desejo, que é assustadora. O que tentamos fazer em O anti-Édipo? Acho que há três pontos, que se opõem diretamente à psicanálise. Esses três pontos são... isso por meu lado, acho que Félix Guattari também não, não temos nada para mudar nesses três pontos. Estamos persuadidos, achamos em todo caso, que o inconsciente não é um teatro, não é um lugar onde há Édipo e Hamlet que representam sempre suas cenas. Não é um teatro, é uma fábrica, é produção. O inconsciente produz. Não pára de produzir. Funciona como uma fábrica. É o contrário da visão psicanalítica do inconsciente como teatro, onde sempre se agita um Hamlet, ou um Édipo, ao infinito. Nosso segundo tema é que o delírio, que é muito ligado ao desejo, desejar é delirar, de certa forma, mas se olhar um delírio, qualquer que seja ele, se olhar de perto, se ouvir o delírio que for, não tem nada a ver com o que a psicanálise reteve dele, ou seja, não se delira sobre seu pai e sua mãe, delira-se sobre algo bem diferente, é aí que está o segredo do delírio, delira-se sobre o mundo inteiro, delira-se sobre a história, a geografia, as tribos, os desertos, os povos...
CP: ... o clima.
GD: ... as raças, os climas, é em cima disso que se delira. O mundo do delírio é: "Sou um bicho, um negro!", Rimbaud. É: onde estão minhas tribos? Como dispor minhas tribos? Sobreviver no deserto, etc. O deserto é... O delírio é geográfico-político. E a psicanálise reduz isso a determinações familiares. Posso dizer, sinto isso, mesmo depois de tantos anos, depois de O anti-Édipo, digo: a psicanálise nunca entendeu nada do fenômeno do delírio. Delira-se o mundo, e não sua pequena família. Por isso que... Tudo isso se mistura. Eu dizia: a literatura não é um caso privado de alguém, é a mesma coisa, o delírio não é sobre o pai e a mãe. O terceiro ponto... Significa isso, o desejo se estabelece sempre, constrói agenciamentos, se estabelece em agenciamentos, põe sempre em jogo vários fatores. E a psicanálise nos reduz sempre a um único fator, e sempre o mesmo, ora o pai, ora a mãe, ora não sei o que, ora o falo, etc. Ela ignora tudo o que é múltiplo, ignora o construtivismo, ou seja, agenciamentos. Dou um exemplo: falávamos de animal, há pouco. Para a psicanálise, o animal é uma imagem do pai. Um cavalo é uma imagem do pai. É ignorar o mundo! Penso no pequeno Hans. O pequeno Hans é uma criança sobre a qual Freud dá sua opinião, ele assiste um cavalo que cai na rua, e o charreteiro que lhe dá chicotadas, e o cavalo que dá coices para todos os lados. Antes do carro, era um espetáculo comum nas ruas, devia ser uma grande coisa para uma criança. A primeira vez que um garoto via um cavalo caído na rua e que um cocheiro meio bêbado tentava levantá-lo com chicotadas, devia ser uma emoção, era a chegada da rua, a chegada na rua, o acontecimento da rua, sangrento, tudo isso... E então ouvem-se os psicanalistas, falar, enfim, imagem de pai, etc., mas é na cabeça deles que a coisa não vai bem. O desejo foi movido por um cavalo que cai e é batido na rua, um cavalo morre na rua, etc. É um agenciamento fantástico para um garoto, é perturbador até o fundo. Outro exemplo, posso dizer... Falávamos de animal. O que é um animal? Mas não há um animal que seria a imagem do pai. Os animais, em geral, andam em matilhas, são matilhas. Há um caso que me alegra muito. É um texto que adoro, de Jung, que rompeu com Freud, depois de uma longa colaboração. Jung conta a Freud que teve um sonho, um sonho de ossuário, sonhou com um ossuário. E Freud não compreende nada, literalmente, ele diz o tempo todo: se sonhou com um osso, é a morte de alguém, quer dizer a morte de alguém. E Jung não pára de lhe dizer: não estou falando de um osso, sonhei com um ossuário... Freud não compreende. Não vê a diferença entre um ossuário e um osso, ou seja, um ossuário são centenas de ossos, são mil, dez mil ossos. Isso é uma multiplicidade, é um agenciamento, é... passeio em um ossuário, o que significa isso? Por onde o desejo passa? Em um agenciamento é sempre um coletivo. Coletivo, construtivismo, etc. É isso o desejo. Onde passa meu desejo entre os mil crânios, os mil ossos? Onde passa meu desejo na matilha? Qual é minha posição na matilha? Sou exterior à matilha? Estou ao lado, dentro, no centro dela? Tudo isso são fenômenos de desejo. É isso o desejo.
CP: Como o O anti-Édipo foi escrito em 72, esse agenciamento coletivo vinha a calhar depois de 68, era toda uma reflexão... daqueles anos e contra a psicanálise, que continuava seu negócio de pequena loja...
GD: Só o fato de dizer: o delírio delira as raças e as tribos, delira os povos, delira a história e a geografia, me parece ter estado de acordo com 68. Ou seja, parece-me ter trazido um pouco de ar são a todo esse ar fechado e malsão dos delírios pseudo-familiais. Vimos que era isso, o desejo. Se começo a delirar, não é para delirar sobre minha infância, aí também, sobre minha história privada. Delira-se... O delírio é cósmico... Delira-se sobre o fim do mundo, delira-se sobre as partículas, os elétrons e não sobre papai-mamãe... é evidente.
CP: Sobre esse agenciamento coletivo do desejo, penso em certos contra-sensos. Lembro-me que em Vincennes, em 72, na faculdade, havia pessoas que punham em prática esse desejo e isso acabava em amores coletivos, não tinham compreendido bem. Houve muitos loucos em Vincennes, como vocês partiam de uma esquizo-análise para combater a psicanálise, todo mundo achava que era legal ser louco, ser esquizo. Víamos cenas inverossímeis entre os estudantes. Queria que contasse casos engraçados ou não desses contra-sensos sobre o desejo.
GD: Eu poderia falar dos contra-sensos abstratamente. Consistiam em duas coisas, havia dois casos, que dá no mesmo. Havia os que pensavam que o desejo era o espontaneísmo, e havia todo tipo de movimentos espontâneos, o espontaneísmo.
CP: Os célebres maos-spontex...
GD: E os outros que pensavam que o desejo era a festa. Para nós, não era nem um nem outro, mas não tinha importância, pois, de qualquer modo, havia agenciamentos que aconteciam, havia coisas que mesmo os loucos... havia tantos, de todos os tipos. Fazia parte do que acontecia naquele momento, em Vincennes. Mas os loucos tinham sua disciplina, tinham sua maneira de... faziam seus discursos, suas intervenções, entravam em um agenciamento, tinham seu agenciamento, mas entravam em agenciamentos. Tinham uma espécie de astúcia, de compreensão, de grande benevolência, os loucos. Se quiser, na prática, eram séries de agenciamentos que se faziam e desfaziam. Na teoria, o contra-senso era dizer: o desejo é a espontaneidade. De modo que éramos chamados de espontaneístas, ou então era a festa, mas não era isso. Era... a filosofia dita do desejo consistia, unicamente, em dizer para as pessoas: não vão ser psicanalizados, nunca interpretem, experimentem agenciamentos, procurem agenciamentos que lhes convenham. O que era um agenciamento? Um agenciamento, para mim, e Félix, não que ele pensasse diferentemente, pois era, talvez... não sei. Para mim, eu manteria que havia quatro componentes de agenciamento. Por alto, quatro, não prefiro quatro a seis... Um agenciamento remetia a estados de coisas, que cada um encontre estados de coisas que lhe convenha. Há pouco, para beber... gosto de um bar, não gosto de outro, alguns preferem certo bar, etc... Isso é um estado de coisas. Nas dimensões do agenciamento, enunciados, tipos de enunciados, e cada um tem seu estilo, há um certo modo de falar, andam juntos, no bar, por exemplo, há amigos, e há uma certa maneira de falar com os amigos, cada bar tem seu estilo. Digo bar, mas vale para qualquer coisa. Um agenciamento comporta estados de coisas e enunciados, estilos de enunciação. É interessante, a História é feita disto, quando aparece um novo tipo de enunciado? Por exemplo, na revolução russa, os enunciados do tipo leninista, quando eles aparecem, como, em que forma? Em 68, quando apareceram os primeiros enunciados ditos de 68? É bem complexo. Todo agenciamento implica estilos de enunciação. Implica territórios, cada um com seu território, há territórios. Mesmo numa sala, escolhemos um território. Entro numa sala que não conheço, procuro o território, lugar onde me sentirei melhor. E há processos que devemos chamar de desterritorialização, o modo como saímos do território. Um agenciamento tem quatro dimensões: estados de coisas, enunciações, territórios, movimentos de desterritorialização. E é aí que o desejo corre...
CP: Você não se sente responsável pelas pessoas que tomaram drogas? Ou, lendo muito ao pé da letra O anti-Édipo, não é como Catão, que incita os jovens a fazer bobagens?
GD: Sentimo-nos responsáveis por tudo, se algo dá errado.
CP: E os efeitos de O anti-Édipo?
GD: Sempre me esforcei para que desse certo. Em todo caso, nunca, acho, é minha única honra, nunca me fiz de esperto com essas coisas, nunca disse a um estudante: é isso, drogue-se você tem razão. Sempre fiz o que pude para que ele saísse dessa, porque sou muito sensível à coisa minúscula que de repente faz com que tudo vire trapo. Que ele beba, muito bem... Ao mesmo tempo, nunca pude criticar as pessoas, não gosto de criticá-las. Acho que se deve ficar atento para o ponto em que a coisa não funciona mais. Que bebam, se droguem, o que quiserem, não somos policiais, nem pais, não sou eu quem deve impedi-los ou ... mas fazer tudo para que não virem trapos. No momento em que há risco, eu não suporto. Suporto bem alguém que se droga, mas alguém que se droga de tal modo que, não sei, de modo selvagem, de modo que digo para mim: pronto, ele vai se ferrar, não suporto. Sobretudo o caso de um jovem, não suporto um jovem que se ferra, não é suportável. Um velho que se ferra, que se suicida, ele teve sua vida, mas um jovem que se ferra por besteira, por imprudência, porque bebeu demais... Sempre fiquei dividido entre a impossibilidade de criticar alguém e o desejo absoluto, a recusa absoluta de que ele vire trapo. É um desfiladeiro estreito, não posso dizer que há princípios, a gente sai fora como pode, a cada vez. É verdade que o papel das pessoas, nesse momento, é de tentar salvar os garotos, o quanto se pode. E salvá-los não significa fazer com que sigam o caminho certo, mas impedi-los de virar trapo. É só o que quero.
CP: Mas sobre os efeitos de O anti-Édipo, houve efeitos?
GD: Foi impedir que eles virassem trapos, que naquele momento... que um cara que desenvolvia... um início de esquizofrenia fosse colocado em boas condições, não fosse jogado num hospital repressivo, tudo isso... Ou então que alguém que não suportava mais, um alcoólatra, onde ia mal, fazer com que ele parasse...
CP: Porque era um livro revolucionário, na medida em que parecia, para os inimigos desse livro, e para os psicanalistas, uma apologia da permissividade, e dizer que tudo era desejo...
GD: De forma alguma... Esse livro, ou seja, quando se lê esse livro, ele sempre teve uma prudência, me parece, extrema. A lição era: não se tornem trapos. Quando nos opúnhamos..., não paramos de nos opor ao processo esquizofrênico como o que ocorre num hospital, e para nós, o terror era produzir uma criatura de hospital. Tudo, menos isso! E quase diria que louvar o aspecto de valor da "viagem", daquilo que, naquele momento, os anti-psiquiatras chamavam de viagem ou processo esquizofrênico, era um modo de evitar, de conjurar a produção de trapos de hospital, a produção dos esquizofrênicos, a fabricação de esquizofrênicos.
CP: Você acha, para terminar com O anti-Édipo, que há ainda efeitos desse livro, 16 anos depois?
GD: Sim, pois é um bom livro, pois há uma concepção do inconsciente. É o único caso em que houve uma concepção do inconsciente desse tipo, sobre os dois ou três pontos: as multiplicidades do inconsciente, o delírio como delírio-mundo, e não delírio-família, o delírio cósmico, das raças, das tribos, isso é bom. O inconsciente como máquina, como fábrica e não como teatro. Não tenho nada a mudar nesses três pontos, que continuam absolutamente novos, pois toda a psicanálise se reconstituiu. Para mim, espero, é um livro que será redescoberto, talvez. Rezo para que o redescubram.

Encontro Dois - Dia 25/03/08

Assuntos debatidos: Outra definição preliminar de alguns mínimos objetivos./ Re-discussão de um cronograma de estudos./ Escolha dos textos para próxima reunião/ Re-apresentação da aula "um" de Sílvio Gallo (Curso "Para Ler Deleuze", realizado em Brennand, PE): Vida e obra de Deleuze; Contexto filosófico da França./
.
Textos e propostas para o próximo encontro: "Introdução à vida não-facista" (Foucault)/ "O Abcdário de Deleuze", letra "D"/ Listagem e definição de alguns conceitos da obra de Deleuze e Guattari.
.
Presentes: Adelle, Jorge, Pedro, Sandro.
.

Encontro Um - Dia 18/03/08

Assuntos debatidos: Fundação do grupo, escolha do nome./ Definição preliminar de alguns mínimos objetivos do grupo./ Noções de um cronograma de atividades, estudos./ Discussão da aula "um" de Sílvio Gallo (Curso "Para Ler Deleuze", realizado em Brennand, PE): Vida e obra de Deleuze; Contexto filosófico da França./
.
Presentes: Jorge, Pedro.
.

A Interpretação, citação de "O Anti-Édipo"

"A Esquizoanálize renuncia a toda interpretação porque renuncia deliberadamente a descobrir um material inconsciente: o Inconsciente não quer dizer nada. Em compensação, o Inconsciente faz máquinas, que são do desejo, e das quais a Esquizoanálise descobre o uso e o funcionamento na imanência às máquinas sociais. O Inconsciente não diz nada, ele maquina. Ele não é expressivo ou representativo, mas produtivo. Um símbolo é unicamente uma máquina social que funciona como máquina desejante, uma máquina desejante que funciona numa máquina social, um investimento da máquina social pelo desejo." (p. 229)
.

20 de mar. de 2008

Kafka e a Esquizoanálise

Esse texto é um bom estudo para alguns conceitos da Esquizoanálise. Não achei disponível em Português, mas quem achar e quiser nos enviar, e-mail para: esquizo.abeira@gmail.com

.

Informe para una Academia (1917) / FRANZ KAFKA

"Excelentísimos señores académicos: Me hacéis el honor de presentar a la Academia un informe sobre mi anterior vida de mono. Lamento no poder complaceros; hace ya cinco años que he abandonado la vida simiesca. Este corto tiempo cronológico es muy largo cuando se lo ha atravesado galopando -a veces junto a gente importante- entre aplausos, consejos y música de orquesta; pero en realidad solo, pues toda esta farsa quedaba -para guardar las apariencias- del otro lado de la barrera.
Si me hubiera aferrado obstinadamente a mis orígenes, a mis evocaciones de juventud, me hubiera sido imposible cumplir lo que he cumplido. La norma suprema que me impuse consistió justamente en negarme a mí mismo toda terquedad. Yo, mono libre, acepté ese yugo; pero de esta manera los recuerdos se fueron borrando cada vez más. Si bien, de haberlo permitido los hombres, yo hubiera podido retornar libremente, al principio, por la puerta total que el cielo forma sobre la tierra, ésta se fue angostando cada vez más, a medida que mi evolución se activaba como a fustazos: más recluido, y mejor me sentía en el mundo de los hombres: la tempestad, que viniendo de mi pasado soplaba tras de mí, ha ido amainando: hoy es tan solo una corriente de aire que refrigera mis talones. Y el lejano orificio a través del cual ésta me llega, y por el cual llegué yo un día, se ha reducido tanto que -de tener fuerza y voluntad suficientes para volver corriendo hasta él- tendría que despellejarme vivo si quisiera atravesarlo. Hablando con sinceridad -por más que me guste hablar de estas cosas en sentido metafórico-, hablando con sinceridad os digo: vuestra simiedad, estimados señores, en tanto que tuvierais algo similar en vuestro pasado, no podría estar más alejada de vosotros que lo que la mía está de mí. Sin embargo, le cosquillea los talones a todo aquel que pisa sobre la tierra, tanto al pequeño chimpancé como al gran Aquiles.
Pero a pesar de todo, y de manera muy limitada, podré quizá contestar vuestra pregunta, cosa que por lo demás hago de muy buen grado. Lo primero que aprendí fue a estrechar la mano en señal de convenio solemne. Estrechar la mano es símbolo de franqueza. Hoy, al estar en el apogeo de mi carrera, tal vez pueda agregar, a ese primer apretón de manos, también la palabra franca. Ella no brindará a la Academia nada esencialmente nuevo, y quedaré muy por debajo de lo que se me demanda, pero que ni con la mejor voluntad puedo decir. De cualquier manera, con estas palabras expondré la línea directiva por la cual alguien que fue mono se incorporó al mundo de los humanos y se instaló firmemente en él. Conste además, que no podría contaros las insignificancias siguientes si no estuviese totalmente convencido de mí, y si posición no se hubiese afirmado de manera incuestionable todos los grandes music-halls del mundo civilizado.
Soy originario de la Costa de Oro. Para saber cómo fui atrapado dependo de informes ajenos. Una expedición de caza de la firma Hagenbeck -con cuyo jefe, por otra parte, he vaciado no pocas botellas de vino tinto- acechaba emboscada en la maleza que orilla el río, cuando en medio de una banda corrí una tarde hacia el abrevadero. Dispararon: fui el único que hirieron, alcanzado por dos tiros.
Uno en la mejilla. Fue leve pero dejó una gran cicatriz pelada y roja que me valió el repulsivo nombre, totalmente inexacto y que bien podía haber sido inventado por un mono, de Peter el Rojo, tal como si sólo por esa mancha roja en la mejilla me diferenciara yo de aquel simio amaestrado llamado Peter, que no hace mucho reventó y cuyo renombre era, por lo demás, meramente local. Esto al margen.
El segundo tiro me atinó más abajo de la cadera. Era grave y por su causa aún hoy rengueo un poco. No hace mucho leí en un artículo escrito por alguno de esos diez mil sabuesos que se desahogan contra mí desde los periódicos "que mi naturaleza simiesca no ha sido aplacada del todo", y como ejemplo de ello alega que cuando recibo visitas me deleito en bajarme los pantalones para mostrar la cicatriz dejada por la bala. A ese canalla deberían arrancarle a tiros, uno por uno, cada dedo de la mano con que escribe. Yo, yo puedo quitarme los pantalones ante quien me venga en ganas: nada se encontrará allí más que un pelaje acicalado y la cicatriz dejada por el -elijamos aquí para un fin preciso, un término preciso y que no se preste a equívocos- ultrajante disparo. Todo está a la luz del día; no hay nada que esconder. Tratándose de la verdad toda persona generosa arroja de sí los modales, por finos que éstos sean. En cambio, otro sería el cantar si el chupatintas en cuestión se quitase los pantalones al recibir visitas. Doy fe de su cordura admitiendo que no lo hace, ¡pero que entonces no me moleste más con sus mojigaterías!
Después de estos tiros desperté -y aquí comienzan a surgir lentamente mis propios recuerdos- en una jaula colocada en el entrepuente del barco de Hagenbeck. No era una jaula con rejas a los cuatro costados, eran mas bien tres rejas clavadas en un cajón. El cuarto costado formaba, pues, parte del cajón mismo. Ese conjunto era demasiado bajo para estar de pie en él y demasiado estrecho para estar sentado. Por eso me acurrucaba doblando las rodillas que me temblaban sin cesar. Como posiblemente no quería ver a nadie, por lo pronto prefería permanecer en la oscuridad: me volvía hacia el costado de las tablas y dejaba que los barrotes de hierro se me incrustaran en el lomo. Dicen que es conveniente enjaular así a los animales salvajes en los primeros tiempos de su cautiverio, y hoy, de acuerdo a mi experiencia, no puedo negar que, desde el punto de vista humano, efectivamente tienen razón.
Pero entonces no pensaba en todo esto. Por primera vez en mi vida me encontraba sin salida; por lo menos no la había directa. Ante mí estaba el cajón con sus tablas bien unidas. Había, sin embargo, una hendidura entre las tablas. Al descubrirla por primera vez la saludé con el aullido dichoso de la ignorancia. Pero esa rendija era tan estrecha que ni podía sacar por ella la cola y ni con toda la fuerza simiesca me era posible ensancharla.
Como después me informaron, debo haber sido excepcionalmente silencioso, y por ello dedujeron que, o moriría muy pronto o, de sobrevivir a la crisis de la primera etapa, sería luego muy apto para el amaestramiento. Sobreviví a esos tiempos. Mis primeras ocupaciones en la nueva vida fueron: sollozar sordamente; espulgarme hasta el dolor; lamer hasta el aburrimiento una nuez de coco; golpear la pared del cajón con el cráneo y enseñar los dientes cuando alguien se acercaba. Y en medio de todo ello una sola evidencia: no hay salida. Naturalmente hoy sólo puedo transmitir lo que entonces sentía como mono con palabras de hombre, y por eso mismo lo desvirtúo. Pero aunque ya no pueda retener la antigua verdad simiesca, no cabe duda de que ella está por lo menos en el sentido de mi descripción.
Hasta entonces había tenido tantas salidas, y ahora no me quedaba ninguna. Estaba atrapado. Si me hubieran clavado, no hubiera disminuido por ello mi libertad de acción. ¿Por qué? Aunque te rasques hasta la sangre el pellejo entre los dedos de los pies, no encontrarás explicación. Aunque te aprietes el lomo contra los barrotes de la jaula hasta casi partirse en dos, no conseguirás explicártelo. No tenía salida, pero tenía que conseguir una: sin ella no podía vivir. Siempre contra esa pared hubiera reventado indefectiblemente. Pero como en el circo Hagenbeck a los monos les corresponden las paredes de cajón, pues bien, dejé de ser mono. Esta fue una magnífica asociación de ideas, clara y hermosa que debió, en cierto sentido, ocurrírseme en la barriga, ya que los monos piensan con la barriga.
Temo que no se entienda bien lo que para mi significa "salida". Empleo la palabra en su sentido más preciso y más común. Intencionadamente no digo libertad. No hablo de esa gran sensación de libertad hacia todos los ámbitos. Cuando mono posiblemente la viví y he conocido hombres que la añoran. En lo que a mí atañe, ni entonces ni ahora pedí libertad. Con la libertad -y esto lo digo al margen- uno se engaña demasiado entre los hombres, ya que si el sentimiento de libertad es uno de los más sublimes, así de sublimes son también los correspondientes engaños. En los teatros de variedades, antes de salir a escena, he visto a menudo ciertas parejas de artistas trabajando en los trapecios, muy alto, cerca del techo. Se lanzaban, se balanceaban, saltaban, volaban el uno a los brazos del otro, se llevaban el uno al otro suspendidos del pelo con los dientes. "También esto", pensé, "es libertad para el hombre: ¡el movimiento excelso!" iOh burla de la santa naturaleza! Ningún edificio quedaría en pie bajo las carcajadas que tamaño espectáculo provocaría entre la simiedad.
No, yo no quería libertad. Quería únicamente una salida: a derecha, a izquierda, adonde fuera. No aspiraba a más. Aunque la salida fuese tan sólo un engaño: como mi pretensión era pequeña el engaño no sería mayor. ¡Avanzar, avanzar! Con tal de no detenerme con los brazos en alto, apretado contra las tablas de un cajón.
Hoy lo veo claro: si no hubiera tenido una gran paz interior, nunca hubiera podido escapar. En realidad, todo lo que he llegado a ser lo debo, posiblemente, a esa gran paz que me invadió, allá, en los primeros días del barco. Pero, a la vez, debo esa paz a la tripulación.
Era buena gente a pesar de todo. Aún hoy recuerdo con placer el sonido de sus pasos pesados que entonces resonaban en mi somnolencia. Acostumbraban hacer las cosas con exagerada lentitud. Si alguno necesitaba frotarse los ojos levantaba la mano como si se tratara de un peso muerto. Sus bromas eran groseras pero afables. A sus risas se mezclaba siempre un carraspeo que, aunque sonaba peligroso, no significaba nada. Siempre tenían en la boca algo que escupir y les era indiferente dónde lo escupían. Con frecuencia se quejaban de que mis pulgas les saltaban encima, pero nunca llegaron a enojarse en serio conmigo: por eso sabían, pues, que las pulgas se multiplicaban en mi pelaje y que las pulgas son saltarinas. Con esto les era suficiente. A veces, cuando estaban de asueto, algunos de ellos se sentaban en semicírculo frente a mí, hablándose apenas, gruñéndose el uno al otro, fumando la pipa recostados sobre los cajones, palmeándose la rodilla a mi menor movimiento y, alguno, de vez en cuando, tomaba una varita y con ella me hacía cosquillas allí donde me daba placer. Si me invitaran hoy a realizar un viaje en ese barco, rechazaría, por cierto, la invitación; pero también es cierto que los recuerdos que evocaría del entrepuente no serían todos desagradables.
La tranquilidad que obtuve de esa gente me preservó, ante todo, de cualquier intento de fuga. Con mi actual dentadura debo cuidarme hasta en la común tarea de cascar una nuez; pero en aquel entonces, poco a poco, hubiera podido roer de lado a lado el cerrojo de la puerta. No lo hice. ¿Qué hubiera conseguido con ello? Apenas hubiese asomado la cabeza me hubieran cazado de nuevo y encerrado en una jaula peor; o bien hubiera podido huir hacia los otros animales, hacia las boas gigantes, por ejemplo, que estaban justo frente a mí, para exhalar en su abrazo el último suspiro; o, de haber logrado deslizarme hasta el puente superior y saltado por sobre la borda, me hubiera mecido un momento sobre el océano y luego me habría ahogado. Todos éstos, actos suicidas. No razonaba tan humanamente entonces, pero bajo la influencia de mi medio ambiente actué como si hubiese razonado.
No razonaba pero sí observaba, con toda calma, a esos hombres que veía ir y venir. Siempre las mismas caras, los mismos gestos; a menudo me parecían ser un solo hombre. Pero ese hombre, o esos hombres, se movían en libertad. Un alto designio comenzó a alborear en mí. Nadie me prometía que, de llegar a ser lo que ellos eran, las rejas me serían levantadas. No se hacen tales promesas para esperanzas que parecen irrealizables; pero si llegan a realizarse, aparecen estas promesas después, justamente allí donde antes se las había buscado inútilmente. Ahora bien, nada había en esos hombres que de por sí me atrajera especialmente. Si fuera partidario de esa libertad a la cual me referí, hubiera preferido sin duda el océano a esa salida que veía reflejarse en la turbia mirada de aquellos hombres. Había venido observándolos, de todas maneras, ya mucho antes de haber pensado en estas cosas, y, desde luego, sólo estas observaciones acumuladas me encaminaron en aquella determinada dirección.
¡Era tan fácil imitar a la gente! A los pocos días ya pude escupir. Nos escupimos entonces mutuamente a la cara, con la diferencia de que yo me lamía luego hasta dejarla limpia y ellos no. Pronto fumé en pipa como un viejo, y cuando además metía el pulgar en el hornillo de la pipa, todo el entrepuente se revolcaba de risa. Pero durante mucho tiempo no noté diferencia alguna entre la pipa cargada y la vacía.
Pero nada me resultó tan difícil como la botella de caña. Me martirizaba el olor y, a pesar de mis buenas intenciones pasaron semanas antes de que lograra vencer esa repulsión. Lo insólito es que la gente tomó más en serio esas pujas internas que cualquier otra cosa que se relacionara conmigo. En mis recuerdos tampoco distingo a esa gente, pero había uno que venía siempre, solo o acompañado, de día, de noche, a las horas más diversas, y deteniéndose ante mí con la botella vacía me daba lecciones. No me comprendía: quería dilucidar el enigma de mi ser.
Descorchaba lentamente la botella, luego me miraba para saber si yo había entendido. Confieso que yo lo miraba siempre con una atención desmedida y precipitada. Ningún maestro de hombre encontrará en el mundo entero mejor aprendiz de hombre. Cuando había descorchado la botella se la llevaba a la boca; yo seguía con los ojos todo el movimiento.
Asentía satisfecho conmigo, y apoyaba la botella en sus labios. Yo, maravillado con mi paulatina comprensión, chillaba rascándome a lo largo, a lo ancho, donde fuera. Él, alborozado, empinaba la botella y bebía un sorbo. Yo, impaciente y desesperado por imitarle, me ensuciaba en la jaula, lo que de nuevo lo divertía mucho. Después apartaba de sí la botella con ademán ampuloso y volvía a acercarla a sus labios de igual manera; luego, echado hacia atrás en un gesto exageradamente didáctico, la vaciaba de un trago. Yo, agotado por el excesivo deseo, no podía seguirlo y permanecía colgado débilmente de la reja mientras él, dando con esto por terminada la lección teórica, se frotaba, con amplia sonrisa, la barriga.
Recién entonces comenzaba el ejercicio práctico. ¿No me había dejado ya el teórico demasiado fatigado? Sí, exhausto, pero esto era parte de mi destino. Sin embargo, tomaba lo mejor que podía la botella que me alcanzaban; la descorchaba temblando; el lograrlo me iba dando nuevas fuerzas; levantaba la botella de manera similar a la del modelo; la llevaba a mis labios y... la arrojaba con asco; con asco, aunque estaba vacía y sólo el olor la llenaba; con asco la arrojaba al suelo. Para dolor de mi instructor, para mayor dolor mío; ni a él ni a mí mismo lograba reconciliar con el hecho de que, después de arrojar la botella, no me olvidara de frotarme a la perfección la barriga, ostentando al mismo tiempo una amplia sonrisa.
Así transcurría la lección con demasiada frecuencia, y en honor de mi instructor quiero dejar constancia de que no se enojaba conmigo, pero sí que de vez en cuando me tocaba el pelaje con la pipa encendida hasta que comenzaba a arder lentamente, en cualquier lugar donde yo difícilmente alcanzaba; entonces lo apagaba él mismo con su mano enorme y buena. No se enojaba conmigo, pues aceptaba que, desde el mismo bando, ambos luchábamos contra la condición simiesca, y que era a mí a quien le tocaba la peor parte.
Y a pesar de todo, qué triunfo luego, tanto para él como para mí, cuando cierta noche, ante una gran rueda de espectadores -quizás estaban de tertulia, sonaba un fonógrafo, un oficial circulaba entre los tripulantes-, cuando esa noche, sin que nadie se diera cuenta, tomé una botella de caña que alguien, en un descuido, había olvidado junto a mi jaula, y ante la creciente sorpresa de la reunión, la descorché con toda corrección, la acerqué a mis labios y, sin vacilar, sin muecas, como un bebedor empedernido, revoloteando los ojos con el gaznate palpitante, la vacié totalmente. Arrojé la botella, no ya como un desesperado, sino como un artista, pero me olvidé, eso sí, de frotarme la barriga. En cambio, como no podía hacer otra cosa, como algo me empujaba a ello, como los sentidos me hervían, por todo ello, en fin, empecé a gritar: "¡Hola!", con voz humana. Ese grito me hizo irrumpir de un salto en la comunidad de los hombres, y su eco: "¡Escuchen, habla!" lo sentí como un beso en mi sudoroso cuerpo.
Repito: no me cautivaba imitar a los humanos; los imitaba porque buscaba una salida; no por otro motivo. Con ese triunfo, sin embargo, poco había conseguido, pues inmediatamente la voz volvió a fallarme. Recién después de unos meses volví a recuperarla. La repugnancia hacia la botella de caña reapareció con más fuerza aún, pero, indudablemente, yo había encontrado de una vez por todas mi camino.
Cuando en Hamburgo me entregaron al primer adiestrador, pronto me di cuenta que ante mí se abrían dos posibilidades: el jardín zoológico o el music hall. No dudé. Me dije: pon todo tu empeño en ingresar al music hall: allí está la salida. El jardín zoológico no es más que una nueva jaula; quien allí entra no vuelve a salir .
Y aprendí, estimados señores. ¡Ah, sí, cuando hay que aprender se aprende; se aprende cuando se trata de encontrar una salida! ¡Se aprende de manera despiadada! Se controla uno a sí mismo con la fusta, flagelándose a la menor debilidad. La condición simiesca salió con violencia fuera de mí; se alejó de mí dando tumbos. Por ello mi primer adiestrador casi se transformó en un mono y tuvo que abandonar pronto las lecciones para ser internado en un sanatorio. Afortunadamente, salió de allí al poco tiempo.
Consumí, sin embargo, a muchos instructores. Sí, hasta a varios juntos. Cuando ya me sentí más seguro de mi capacidad, cuando el público percibió mis avances, cuando mi futuro comenzó a sonreírme, yo mismo elegí mis profesores. Los hice sentar en cinco habitaciones sucesivas y aprendí con todos a la vez, corriendo sin cesar de un cuarto a otro.
iQué progresos! ¡Qué irrupción, desde todos los ámbitos, de los rayos del saber en el cerebro que se aviva! ¿Por qué negarlo? Esto me hacía feliz. Pero tampoco puedo negar que no lo sobreestimaba, ya entonces, ¡y cuánto menos lo sobreestimo ahora! Con un esfuerzo que hasta hoy no se ha repetido sobre la tierra, alcancé la cultura media de un europeo. Esto en sí mismo probablemente no significaría nada, pero es algo, sin embargo, en tanto me ayudó a dejar la jaula y a procurarme esta salida especial; esta salida humana. Hay un excelente giro alemán: "escurrirse entre los matorrales". Esto fue lo que yo hice: "me escurrí entre los matorrales". No me quedaba otro camino, por supuesto: siempre que no había que elegir la libertad.
Si de un vistazo examino mi evolución y lo que fue su objetivo hasta ahora, ni me arrepiento de ella, ni me doy por satisfecho. Con las manos en los bolsillos del pantalón, con la botella de vino sobre la mesa, recostado o sentado a medias en la mecedora, miro por la ventana. Si llegan visitas, las recibo correctamente. Mi empresario está sentado en la antecámara: si toco el timbre, se presenta y escucha lo que tengo que decirle. Por las noches casi siempre hay función y obtengo éxitos ya apenas superables. Y si al salir de los banquetes, de las sociedades científicas o de las agradables reuniones entre amigos, llego a casa a altas horas de la noche, allí me espera una pequeña y semiamaestrada chimpancé, con quien, a la manera simiesca, lo paso muy bien. De día no quiero verla pues tiene en la mirada esa demencia del animal alterado por el adiestramiento; eso únicamente yo lo percibo, y no puedo soportarlo.
De todos modos, en síntesis, he logrado lo que me había propuesto lograr. Y no se diga que el esfuerzo no valía la pena. Sin embargo, no es la opinión de los hombres lo que me interesa; yo sólo quiero difundir conocimientos, sólo estoy informando. También a vosotros, excelentísimos señores académicos, sólo os he informado."

(*)Traducción: Jordi Rottner

.